Todas as Vozes

Nenhuma

Todo Silêncio
Escuto na palavra a festa do silêncio.

António Ramos Rosa
Todas as Vozes

Porque é preciso
penetrar no intervalo silencioso e raso
entre o sonhado e o possível
         e fazer música.
Todas as vozes. nenhuma — tantas
essa inclusive. antiga
a repetir palavras
desalinhadas no tempo
e outras 
desafinadas. rudes
agudas demais. graves de menos
apáticas. dramáticas. ingênuas
Babel interior
murmúrios carpideiros
Onde? a voz privema se perdeu
e quando? 
Por que tanta palavra
se só — no silêncio me encontro?
A voz pequena que andou calada
ou sufocada
pelo infernal mormaço
agora canta.
Se desprendeu
do peso da matéria.bruta
e canta brumas.
Enquanto sopra
folhas de dente-de-leão no vento. 
As vozes se unem como num mantra
tão antigo quanto a lua
e os uivos/dos lobos/dos homens
pois tudo canta
ainda que
ruídos
tentem nos impedir
e o lento e áspero arrastar–se
das horas
(cálices de silêncio e absinto)
pedras que se atiram no lago/lodo
onde toda palavra mergulha e sufoca
:se não cumprida sina.
A noite está repleta de vozes
vindas de dentro
do coração.

Ouço nitidamente uma canção.
A voz latente tenta se libertar
do fosso-nada em que habita.

Quando consegue, cria asas e voa.

Palavra-livre que ninguém
aprisione. Sequer um ‘cale-se’.
Vozes vindas da alma, das profundezas 
(invenções e memórias)
revérbero de vozes mais antigas
repercute o poema
quando bate nas pedras

— e canta.
Finalmente ancorou
e o coração serena  — não a voz
que segue
à espera da grande onda
         que faz voar as âncoras.
Pequena voz
que clama no deserto
parábolas antigas.

E o ruído do vento
E o vento  o vento
Onde a beleza se esconde
senão nos olhos
aquários antigos
almas seculares
(velha voz)
ambíguos
ante_passados
sentimentos
(dia a_pós)
mas o que há de moderno
em nós?
A moça 
quer ter a voz do rio e a cor dos seus cabelos
então mergulha. sem saber
que o rio é espelho.
Inaugura cantatas em tons de espanto
enquanto as águas
tingem as crinas de vermelho.
Sufoca gemidos. ruídos 
que se arrastam no fundo da garganta
[ de limo e pedra. 
Mechas são detritos
de gente e árvore. de bicho e lata.
Restos
[ de vida e pedra.
A moça vira peixe
cabelos verdes de medusa.marinha. Que todo rio
é mar. sem saber.
E canta
abismos insondáveis. 
A velha voz.aguda e ríspida.insiste
em abafar doçuras.
Fosse ainda o silêncio
mas não.
A voz de dentro
não cala.
Às vezes muda.de tom.
Graves oblíquas óbvias:— palavras. 
Ouço vozes. muitas — não as distingo.
[repetem palavras repetem]
E tudo
que precisava ouvir
era o som
de um pedregulho
atirado no lago.
[e que os círculos concêntricos 
nos redimam e o silêncio nos liberte]
São tantas vozes. tantas
que a melodia se confunde
num ruído dissonante

de percussiva beleza
e raro encanto.
Todas as vozes que um dia julguei
vindas do céu
vinham de dentro
de mim.
Julgo então não haver céu — ou
eu o contenho. 
Nenhuma
Articulada fala
arte língua pátria. mãe
te quero minha.

Me sinto. no exílio
quando te calas.
A voz
a voz que soprava poemas
agora se cala.
A voz
foi soprar noutros cantos
cantos outros. 
Dissonante voz miúda
neste tempo agudo de ruído 
e ventania
pétala que não se ouve
quando se toca 
o chão.
E quem quer saber de flores 
neste tempo obtuso
de pedra?
Diz com o olhos
o que não ousa dizer
a voz.

Resta saber
— haverá espelhos?
A voz
quando se cala
tem a severidade  de mil casulos.
Só o tempo
pode romper o claustro
e libertar as asas
da voz.      
    
Procuro minha voz procuro / eco / é tudo que encontro
desfeito no caos
vindo de dentro das cavernas de mim.
Reverberados medos / cadeias de montanhas
tempo floresta / intransponível
[ alguns pássaros
vitórias régias rios rastros de bichos barro [ berros
que tudo grita porque tudo vive e dói
essa aventura rouca
de viver  em busca do verbo grafado
na pedra da garganta.
[ a ponte movediça sobre o pântano negro
onde toda palavra se debate e naufraga 
olhos de crocodilos / invertidos espelhos
confusão dos sentidos
mil sons / então: submerge o poema [ silenciosamente.
A voz antiga me ronda, quer voltar.
Mas já não sabe cantar essa voz, então se arrasta
lenta, pesada, triste.
Carrega memórias e esquecimentos
lamúrias e dores
e gritos ancestrais.
E diz de campos de flores e trigo
que já secaram.
Embarques, chegadas, partidas
em trens e navios agora fantasmas.
De mares e rios que transbordaram.
Estradas e trilhos cobertos
de árvores de cipós.
O pó dos dias embaçou os olhos e a voz se perdeu
entre ruído e música que insistem
em perturbar o tom
e o ritmo original.
Dissonante poema, que oscila entre o que não foi
e o que se perdeu no caminho.  
A voz que cantava miudezas 
quer voltar. 
Mas os olhos estão cegos
de tanto olhar lonjuras 

[infecundas e prescindíveis]
Decidi baixar o tom. da voz.
Estridente demais
talvez seja ela
que me faça doer
a cabeça.
(e como dói)
Poética voz — descansa.
Fala baixo ou
cala a boca.


Poética voz — descansa
que a outra
já não sabe da cor
do tom. do tato
do verbo. a desmanchar
colado. no palato.   
Perdeu a voz - nenhum som
gemido canto sopro
palavra — está muda.
Talvez não tenha mesmo 
mais nada a dizer.

Você me tiraria pra dançar?
Pergunto.
Mas não há música
você diria
nenhuma voz.
Na memória dos pés
uma canção
antiga.
Na memória dos sentidos
ninguém.
Como compor a sua música
se está só?

Sem a voz (o respiro)

que faz nascer a nota
e a letra

das canções.
E quando lhe voltar enfim. a voz
talvez não haja mais
ninguém

que lhe ouça.   
Todo Silêncio
Ouve. É deste silêncio que te falo.
Eu cantaria todas as canções que meu silêncio
desejasse
e levaria tudo que meus olhos pudessem colher.
[e minhas mãos sonhassem]
Eu plantaria luas nos alpendres da tarde.
[e estrelas cadentes que quebrassem vidraças]
Na revolta dos sentidos
a pele seria:-um vasto campo de algodão ao som
das rajadas de vento:-e flor.
 
Que nome dar ao verso se
ele não
me responde?
Silencioso segue
gritando
verdades
que desconheço.
Fala pelos olhos. Por mim.
Era forte minha voz. Era. Agora é silêncio.
Cantar para que / e quem?
Ouço a música dentro e a letra rabisco
no papel.
Ilegível / inaudível / intangível / canção
pra ninguém.
Hoje uma voz vinda de dentro
não sei de mim
ou do rio
me disse — vai
ser.
E se calou fluída
feito uma flauta doce — e eu
fui.
A voz quer dizer de outros cantos
que não são meus.

Violentamente a voz me obriga
a dizer

. . . . . . . . . . . . . . do que não sei.

Para onde vai a voz quando se cala?
A música. A música.
Para onde?
As mãos do homem e suas cordas
elos rompidos

— silêncios.
Era preciso calar. insiste. mas a voz
não cala.
Em compulsão bulímica
devora palavras. e regurgita versos
no limiar
entre loucuras santas e sanidades
profanas.
Na linha tênue que divide fronteiras
— único ponto de equilíbrio. 
Ergo-te noite a minha voz
[a tua, sempre mais forte
me sufoca]
Acendo lumes
pequenos
[lamparinas]
que o vento — cúmplice teu
sempre vem. E sopra. 
Este silêncio oculto, dissimulado
encobre, recepta
cala boca ou fere.
Mascara.
finge-se de morto. Fala.
Hipóteses puras, conjecturas
como toda palavra
— incerta.  
Quando a noite me cala
quantos nomes que me chamam.

[reverberam  silêncios]
Cortante este silêncio.
Tão mais que a negação
dos rumores vocais -

Um vazio de muitos ais.
Quando o silêncio é muito
parece ser tudo — não é.
Há sempre um piano
prestes a ser tocado
um assobio — que seja
do vento
um gato no telhado.
Ocultas — latentes
             palavra e música
             se pressente.
Paralelo espelho
a palavra espera
pelo seu reflexo

silencioso.
E se tudo é silêncio – haja palavra.
E se tudo é espanto – onde o canto?

E se tudo é vazio – o chão acolhe.

— E quando não há chão?
De silêncio em silêncio
se faz a partitura.
[depois o canto]
Uma pedra no lago
breve ruído
um círculo concêntrico.
Então, tudo termina
num ponto. Silencioso.
O silêncio se impõe
inevitável, cortante, pleno
como todo silêncio
que não é
a negação da palavra
apenas respiro
profundo
preciso
instante mais escuro
antes — do primeiro sol.
Quebrar o jarro do silêncio
e se fartar da sede
que ele continha
[e esperar pelas chuvas]
Água:palavra que transborda
além 
da rispidez das margens.
Todas as vozes

Nenhuma

(Todo silêncio)